Uma tristeza profunda se abateu sobre nós. Numa noite chuvosa e fria de um Recife quente, os bons ventos de agosto levaram nossa companheira Lenira de Carvalho. Ela se encantou, virou estrela, nos restando guardar a memória de seu brilho, que ficará como rastro no redemoinho do tempo da história deste país. Lenira Maria de Carvalho, PRESENTE, HOJE E SEMPRE!
Lenira Maria de Carvalho foi fundadora e Presidenta de Honra do Sindicato das Trabalhadoras Domésticas de Pernambuco, onde sua luta incessante e intransigente pelos direitos dessas mulheres trabalhadoras fez dela, também, uma militante fundamental da luta do conjunto das mulheres e da luta pela democracia no Brasil.
Lenira esteve conosco em todos os momentos de nossa trajetória político-institucional nos nossos 40 anos de existência. Ela integrou nosso coletivo e depois, para nossa alegria, integrou nosso Conselho Político até o dia em que partiu, onde foi um dos nossos faróis mais importantes. Para nós do SOS Corpo, que tínhamos uma relação política e profundamente afetiva com Lenira, receber essa notícia é motivo de profunda dor. Sua presença, sua luta e sua voz fazem parte do que somos hoje e foi imprescindível para a nossa existência enquanto mulheres, feministas, trabalhadoras e enquanto um Instituto Feminista que luta pela Democracia.
Agora, sua presença fica entre nós como ausência e legado. Lenira de Carvalho viveu uma grande vida, toda consagrada à luta popular a partir do lugar de trabalhadora doméstica. Nesta oportunidade ela conheceu o feminismo e o incorporou ao seu pensamento e ação. No entanto, a radicalidade de sua prática política nos ensinou a viver um feminismo mais encarnado, popular, antirracista e anticapitalista, porque situado na relação e na luta com as trabalhadoras domésticas cuja maioria eram e são negras e empobrecidas. Uma trajetória marcada por muita coerência política, de um engajamento visceral que foi fundamental para a construção da organização e da luta das trabalhadoras domésticas e do conjunto das mulheres da classe trabalhadora. E foi assim que sua contribuição extrapolou o universo de conquista das trabalhadoras domésticas, sem abdicar da centralidade destes sujeitos e deste trabalho para a sustentação do mundo como o conhecemos. Foi a partir desta que Lenira construiu seu espiral, sem perder o jeito simples de ser… A mulher mais sábia e coerente que conhecemos na prática política.
Percorrendo as estradas de nossas memórias, nos sentamos na beira do caminho para saudar tantas lembranças. Entre tantos ensinamentos, aprendemos com sua experiência e devoção à luta, a viver um feminismo mais encarnado nas vidas das mais exploradas entre as exploradas. Tivemos a oportunidade de conhecer a alegria dela, simples e certeira, de quem sabia, na sua serenidade aguerrida e firme, o que realmente deve interessar na luta e na vida das mulheres trabalhadoras. Ela sempre nos chamou a atenção para isso, como quem diz: “Não se percam nas entrelinhas! Não se confundam! Acertem no que interessa às mulheres reais, às exploradas e oprimidas…”. Ela era um de nossos faróis mais importantes, sua experiência iluminava nossos caminhos na construção de um feminismo real e antissistêmico.
Mesmo atravessada por sofrimentos e desafios, Lenira viveu uma vida boa e construiu uma vida cercada de muita gente, de muitas pessoas que tiveram o presente de conviver com e de compartilhar sua serenidade, sua alegria, seu imenso conhecimento sobre a vida e sobre a luta. Ninguém passou incólume do seu toque. Não tinha parentes consanguíneos, mas uma família grande, feita na luta. Lenira nos ensinou e provou que família é a gente que escolhe, forma e vive. Talvez não haja nada mais feminista e transformador que isso nesses tempos sombrios que vivemos. No seu momento final esteve cercada de uma comunidade inteira, de companheiras do Sindicato, de militantes, amigos/as, vizinhos/as… Fez sua passagem com suavidade e sem sofrimento, em sua casa, que tanto amava e que foi uma conquista fruto de seu trabalho e de sua luta. Essa é uma das partidas que nos deixam partidas. Deve ser por isso a palavra.
Lenira Maria de Carvalho deixa um legado de resistência e sabedoria. Ela entra para a história como uma pensadora feminista, forjada na educação popular mais sensível e na luta das trabalhadoras domésticas. Ela aprendeu na vida a fazer e a refletir, a ler a situação das mulheres, a interpretar, propor e também a transmitir, como ninguém, as suas ideias pra nós todas que lutamos juntas. Vamos guardar conosco seu pensamento para as futuras gerações.
Perdemos uma companheira, mas ganhamos uma estrela que continuará a nos guiar com o seu legado. Foi no mês de agosto que os ventos da Boa Morte a encantaram, isso nos deixa a certeza de que ela será acolhida pra descansar, depois de tanta luta e de um imenso legado. Que nós todas possamos honrá-la, não nos perdendo nas entrelinhas e construindo coragem para fazermos o nosso trabalho!
Lenira Maria de Carvalho, PRESENTE, PRESENTE, PRESENTE!
HOJE E SEMPRE!
Das companheiras do SOS Corpo Instituto Feminista para a Democracia