«Dias Mulheres Virão»: Esta foi a frase que circulou o Brasil neste 8M anunciando a força e a esperança das mulheres frente à reação dos grupos de extrema-direita contra o feminismo.
Por Déborah Guaraná
Previsto para acontecer logo na sequência de um carnaval que foi marcado por fortes críticas políticas, o 8M registrou a primeira grande mobilização do ano organizada coletivamente por mulheres contra o governo. Mais de 150 mil pessoas estiveram nas ruas de todo o país se manifestando contra a ofensiva conservadora, ultraneoliberal, articulada ao fundamentalismo religioso e sua teologia da prosperidade, ao fascismo social e à militarização. As mulheres saíram às ruas contra a liquidação das políticas para igualdade de gênero e racial, das políticas de apoio à agricultura familiar e de comunidades tradicionais, aumento da política de violência policial contra população negra e de periferia, fim do compromisso com segurança alimentar e nutricional e com a seguridade social, nenhuma política de promoção de emprego, fim do Ministério do Trabalho, retomada dos manicômios e tratamento com choque elétricos, antigos conhecidos das mulheres internadas à força.
O Brasil está num momento crítico. A consolidação da grande ofensiva capitalista e racista contra as mulheres, especialmente as negras, indígenas, quilombolas e pobres se traduz no extermínio impune dessas populações. A política de segurança brasileira, cópia da americana, faz uma verdadeira guerra à população negra. A cada 13 minutos, um jovem negro é assassinado com arma de fogo no Brasil. O genocídio tanto acontece pela mão armada das polícias, milicianos, como pelas balas dos seguranças particulares de empresas, políticos, latifundiários, mineradores, pecuaristas. Somente nos 13 primeiros dias do ano de 2019 foram registrados, em média, mais de cinco casos de feminicídio diários, entre consumados e tentativas, com um total de 67 registros. De acordo com dados do Mapa da Violência Contra a Mulher 2018, entre janeiro e novembro, só a imprensa brasileira veiculou 68.811 casos de violência contra a mulher, divididos em categorias como importunação sexual, violência on-line, estupro, feminicídio e violência doméstica. Desse total, os casos de assassinatos motivados por discriminação pela condição feminina são 15.925 registros. Em 2016, antes de Bolsonaro decretar a facilitação da posse de armas no país, os dados revelam que 4.645 mulheres foram assassinadas naquele ano, metade delas vítimas de armas de fogo. O feminicídio, a lesbotransbofobia, o estupro e a violência constituem-se formas de conter a autonomia, a fala e o poder de decisão das mulheres, aprofundando o autoritarismo típico de uma sociedade patriarcal e escravocrata.
Nesse contexto, o feminismo é uma das forças políticas centrais da resistência e da luta antissistêmica. No 8M as mobilizações começaram antes do raiar do dia. Duzentas militantes do Movimentos dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e do Movimento pela Soberania Popular na Mineração (MAM) ocuparam uma unidade da mineradora australiana Mirabela Nickel em Ipiaú (BA), protestando contra o modelo predatório de exploração de níquel. No Rio Grande do Norte, agricultoras distribuíram 15 toneladas de alimentos produzidos nos assentamentos do estado, e em Porto Alegre (RS) foram organizados painéis sobre feminicídio, violência contra a mulher e direitos reprodutivos durante toda a manhã. À tarde, aconteceram as grande mobilizações nas capitais brasileiras. Recife, Salvador, Natal, Fortaleza, Porto Alegre, Rio de Janeiro, Brasília e São Paulo reuniram, cada uma, dezenas de milhares de pessoas. Além das grandes cidades, manifestações menores aconteceram no campo, no sertão, no cerrado, nas matas e nos territórios indígenas e quilombolas por todo o país. Igualmente potentes, todos fizeram duras críticas ao governo recém-eleito e sua política de promoção do ódio às mulheres, população negra, pobre, periférica, LGBTIs, indígena e quilombola.
Para as ativistas do Cfemea, as declarações polêmicas e preconceituosas do próprio presidente e sua equipe envolvendo os papéis sociais e de gênero, a autonomia das mulheres e das populações LGBTIs sobre o próprio corpo e o próprio prazer, não são cortinas de fumaça para encobrir as verdadeiras intenções dos governantes, mas sim partes constitutivas e necessárias da política do governo usadas na intenção de coibir as liberdades individuais e coletivas, a participação popular na política e impor também suas políticas econômicas privatizantes e de desmonte dos direitos.
A Articulação de Mulheres Brasileiras (AMB) faz uma leitura de que, neste 8 de Março aconteceu um tsunami feminista e enxerga um aumento de poder das vozes de mulheres nacionalmente. A arte do 8 de março do Recife deste ano representava Marielle não como semente, como costumamos referir-nos a ela, mas como água. Foi criada pelas mãos da artista aquariana Ianah Maia, mulher preta, tatuadora baiana, moradora da cidade de Olinda, ativista do Fórum de Mulheres de Pernambuco. O desenho da tatuadora de traçado rabiscado, tão cru quanto vivo e pulsante, demonstrou o feminismo como alguns livros o categorizam, em ondas históricas, trazendo e criticando ao mesmo tempo esta visão registrada com padrão tão europeu que chega a ser também patriarcal e racista. Ianah não desenha linhas retas, mas traça o perfil do sentimento histórico mostrando suas mulheres negras e indígenas, de punho em resistência, aglomeradas em formato de onda alta e brava, formando uma maré forte e surgindo do espírito de si mesmas, como quem reconhece sua ancestralidade. Marielles, todas. O que pode o patriarcado contra o aumento dos níveis globais deste oceano, consequência de suas próprias golpes políticos que promovem o uso de venenos em larga escala, além da monocultura, extrativista? Na era da futuro, a burrice dando as cartas. Marielle foi semente, todas as mulheres são água. Os níveis dos oceanos feministas estão subindo, tornando inevitável a queda do patriarcado, quem dirá de Bolsonaro.
Ianah é também autora da ilustração da identidade visual da frase-tema do Encontro Estadual do Fórum de Mulheres de Pernambuco, que aconteceu logo na sequência do 8M, nos dias 9 e 10 de março e reuniu cerca de 150 mulheres que integram o coletivo no Estado. Mas a frase Dias Mulheres Virão começou a ganhar popularidade ainda no ano passado. Foi proferida pela primeira vez pela organizadora da Articulação do Semiárido (ASA) Minas Gerais, Valquíria Lima, no encerramento do Encontro “A convivência com o semiárido e as mulheres: Nossa luta, nossa voz, nossa construção», no dia 18 de outubro de 2018. Se um mundo sem mulheres não é possível, Dias Mulheres Virão. Falando sobre o devir, sobre sonhos compartilhados juntas, e sobre a certeza de que as mulheres representam dia melhores, Valquíria foi aplaudida de pé por mulheres da região Semiárido Brasileiro. Do campo para a cidade, a frase foi replicada em diversos cartazes de diferentes metrópoles brasileiras neste 8M. Muitas não conhecem a história de Valquíria. Ouviram ou leram a frase na coluna da Folha, no Tweet da Marcia Tiburi ou mesmo pixado em alguma parede suja das cidades. A disseminação da esperança e certeza de uma aurora feminista, nos enche de garra para construir o mundo que queremos!